quinta-feira, 5 de abril de 2012

Coração Dividido




- Mamãe, papai, o que vocês estão fazendo aqui? – perguntei, com um falso bom humor.
Senti um aperto no estômago e logo vi que não tinha saída. Mesmo assim, não estava disposta a deixá-los fazer uma cena na frente dos meus amigos.

- A questão é: o que você está fazendo aqui, Lua? – indagou meu pai, furioso. – Você nos disse que estaria passando a noite na casa de Sophia.
- E estava... Quero dizer, estou – respondi gaguejando. – Estava lá na casa dela, e então o Chay ligou e sugeriu que déssemos um pulinho aqui...
- E simplesmente coincidiu de você estar com um vestidinho de veludo preto novinho? Que sorte, hein? – arremedou minha mãe, me fitando com um olhar assustador. – Você conhece as nossas regras, Lua. Você não vai a festas sem nossa permissão...
- Mãe, por favor, psiu – sussurrei, nervosa.
Todo mundo estava olhando para nós.
- Pegue suas coisas. Você vem com a gente – disse meu pai.
- O resto das minhas coisas está na casa da Sophia.
- Não, não está mais – retrucou minha mãe. – Nós pegamos tudo quando paramos na casa de Sophia para entregar a sacola de plástico que você deixou cair no corredor. Achamos que não gostaria de passar a noite sem o seu soro para as lentes de contato e sem a sua escova de dente, e então demos um pulo até lá no caminho para o restaurante chinês.
Ela esperou que eu dissesse alguma coisa, mas não havia nada que pudesse pensar em dizer. Chay tinha aberto caminho no meio do povo e se aproximava de nós.
- Algum problema, Lua? – perguntou ele.
- Tenho que ir para casa – respondi, mordendo o lábio para não chorar na frente dele e de toda aquela gente.
- Puxa vida, que roubada... – disse ele, me lançando um olhar de solidariedade. – eu te ligo depois, tá?
- Tudo bem – murmurei.
Eu me virei e saí andando pelo corredor atrás de meus pais. Meu irmãozinho e minha irmãzinha estavam esperando no hall. As pessoas se afastavam para nos deixar passar. Eu nunca tinha sido tão humilhada em toda a minha vida.
- Mãe, pai... – comecei.
Meu pai se virou e me olhou com uma expressão calma e fria.
- Nem uma palavra mais, Lua. Tivemos um longo dia e estamos cansados. Vamos conversar sobre isso amanhã de manhã. Quando chegarmos em casa, você vai direto para o seu quarto.
Eu me instalei no assento traseiro do táxi que meu pai chamou e voltamos para casa em silêncio.

Na manhã seguinte meus pais já estavam sentados na mesa para o café da manhã quando entrei na cozinha.
- Sente-se, Lua – ordenou minha mãe, mostrando meu lugar com um gesto.
Era como se eu fosse um réu num tribunal.
- Realmente sinto muito... – comecei dizendo.
Sempre achei que a auto-humilhação era uma estratégia que funcionava bem. Nenhuma mãe consegue ficar furiosa com uma filha que admita ser um lixo e implore por perdão.
- Queria que vocês soubessem que essa foi a primeira vez que fiz algo desse tipo, e não me senti nada bem.
Olhei esperançosa de minha mãe para meu pai, tentando julgar se os estava atingido ou não. Os dois me escutavam em silêncio.
- Vocês sabem o que é ser a única da turma que não pode ir a uma festa? – continuei. – Todo mundo fica achando que é uma babaca, uma nenêzinha! Forma vocês que escolheram essa escola para mim, e ela tem uma vida social muito, muito agitada. Há festas em todos os fins de semana...
O silêncio permaneceu enquanto eu desfiava as minhas desculpas, que ficaram suspensas no ar até começar a me sentir realmente desconfortável. Meu pai limpou a garganta para falar:
- Concordo que talvez o primeiro erro tenha sido nosso, Lua – disse ele. - É verdade, fomos nós que escolhemos a Dover School para você. É uma escola muito boa. Infelizmente é também uma escola de filhinhos de papai ricos e mimados, e isso não é o que queremos para você.
- Não estão pensando em me transferir de escola, estão? – perguntei, em pânico. – Não agora que estou me sentindo adaptada e enturmada pela primeira vez na vida. Não agora que finalmente encontrei um garoto que gosta de mim e que consegui um papel na peça da escola...
- Querida, nós apenas queremos o melhor para você em longo prazo – disse minha mãe calmamente. – E festas sem supervisão de adultos e com bebidas alcoólicas não são o melhor pra você.
- Mas, mãe... – comecei a protestar.
Ela me deteve com um gesto e olhou para meu pai.
- Acho melhor chamarmos Daniel e Ana para deixar que participem disso também – sugeriu-a.
- Porque precisam me ver nesta situação, toda encrencada? – perguntei. – Você sabe como é o Daniel. Ele vai se lembrar de tudo o que você disser e depois vai me repetir tudo palavra por palavra quando estiver com raiva de mim.
- Nós os queremos aqui porque isso diz respeito a eles também – declarou papai. – Vocês dois desliguem a TV e venham cá! – gritou, colocando a cabeça perto da porta.
Escutaram-se alguns resmungos, e então duas cabeças despenteadas apareceram.
- Era o meu desenho animado preferido! – reclamou Ana.
- Sente-se – disse meu pai, indicando os bancos altos no balcão da cozinha.
Havia algo na voz dele que fez os dois se sentarem sem argumentar.
- Sua mãe e eu passamos quase toda a noite em claro conversando – revelou papai.
- Vocês não vão se divorciar vão? – perguntou Ana. – Não quero ter de ir aos tribunais e me ver no meio de uma guerra pela custódia da gente, como a Amy.
- Não, Ana, não vamos nos divorciar – respondeu papai. – Apenas fique quietinha e escute, e vai ficar sabendo o que decidimos.
Ele esperou até todos ficarmos completamente quietos para começar a falar. Não é à toa que ele é advogado.
- Sua mãe e eu não estamos muito felizes com a maneira como as coisas vão indo nesta família. Vocês três estão tendo problemas...
- Eu já disse que sentia muito – interrompi. – E que não aconteceria de novo.
- Não é só você, Lua – disse papai, lançando um olhar para mamãe. – Quase todo dia os outros roubam o dinheiro do lanche do Daniel. A psicóloga da escola de Ana diz que ela está tendo problemas de relacionamento e quer que faça terapia três vezes por semana. E você mentir para a gente, Lua, foi a gota d’água.
- E o mais incrível de tudo isso - interrompeu mamãe - é que pensávamos estar fazendo o melhor por vocês. Pagamos uma fortuna em mensalidades para mandá-los às melhores escolas, mas estamos percebendo que isso talvez não seja o melhor. Vocês precisam é do nosso tempo e da nossa atenção, que não podemos dar-lhes porque estamos constantemente ocupados com as nossas coisas.
- Precisamos de um tempo para ser uma família, crianças - suspirou meu pai. - Isso não é jeito de viver, sempre na correria, sempre sob pressão, nunca comendo juntos, sempre pizza e comida para viagem em vez de uma boa comida caseira...
- Mas gosto de pizza! - interrompeu Ana
- As coisas de que gostamos nem sempre são as melhores para nós, meu amor - retrucou mamãe com suavidade. - Somos os pais de vocês e nós é que temos de pensar no que é realmente o melhor para que cresçam felizes e saudáveis.
Houve uma pausa dramática.
- Vamos estudar em escolas públicas, papai? - perguntou Daniel por fim.
- Provavelmente. Vamos ter de olhar isso ainda, mas acho que é bem provável - respondeu papai.
Mamãe respirou fundo.
- A decisão que tomamos é que Nova York não é um lugar saudável para criar os filhos - disse ela - e, no ritmo que estamos indo, seu pai e eu seremos dois fortes candidatos a um enfarte por volta dos quarenta anos. Sei que vocês têm nos ouvido conversar a respeito do problema do vovô durante toda a semana. Ele quebrou a perna e não tem ninguém para ajudá-lo a tomar conta do rancho. Nessa noite papai e eu decidimos que a melhor coisa a fazer é ir para lá cuidar dele.
- Para o Wyoming? – perguntei abruptamente.
- Para o Wyoming – respondeu meu pai.
- Nós todos? Por quanto tempo? – tornei a perguntar sentindo minha voz estremecer.
- Quem sabe? – disse meu pai. – Talvez para sempre. Vamos ter de ver como as coisas correm por lá.
Endireitei o corpo de supetão.
- Para sempre? Pai, você não pode estar falando sério! Não podemos nos mudar de Nova York!
- Estivemos conversando bastante a respeito disso... – disse mamãe.
- Eu sei – interrompi -, a história da fazenda em Connecticut. Mas nunca achei que estivessem falando sério. Sempre pensei que gostassem de Nova York tanto quanto eu gosto.
- Estamos cansados desta vida estressante – disse papai. – E, como a sua mãe falou, chegamos à conclusão de que Nova York não é um bom lugar para criar uma família saudável.
Fiquei em pé de um salto.
- Vocês não podem estar falando sério! Eu não posso sair de Nova York agora. Todos os meus amigos estão aqui. Não daria para eu ir morar com a Sophia? Eles têm uma cama extra lá, do irmão dela que está na faculdade. Sei que a mãe dela iria concordar...
- Sophia é uma das maiores partes do problema todo, Lua – observou meu pai. – A mãe dela lhe dá todo tipo de liberdade que nós não querermos dar a você.
- É principalmente por cauda de você que nós chegamos a essa decisão – completou minha mãe. – É você quem queremos fora dessa cidade o mais cedo possível.
- Não consigo acreditar que estão fazendo isso comigo! – protestei. – Isso é seqüestro infantil! É abuso infantil! Vou falar com as autoridades do Juizado de Menores e ver o que têm a dizer a respeito.
Meu pai sorriu.
- Eles vão dizer que uma criança deve morar com os pais até completar dezoito anos – disse ele. – Goste ou não, você vem conosco, Lua.
- E eu acho que vocês vão gostar crianças – concluiu mamãe, com uma voz realmente animada. – Imaginem não ter de lutar com o trânsito e a multidão todas as manhãs. Poderíamos comprar cavalos para vocês, se quiserem. Teríamos tempo para jantar juntos...
- Mas como vai encontrar trabalho em Wyoming? – zombei.
- Não vou trabalhar. Nem o seu pai. Nós dois estamos parando de trabalhar.
- Ah, não! – gemeu Ana. – Vamos virar sem-teto e mendigos! Não quero dormir numa caixa de papelão!
Aquilo quebrou a tensão e todos tivemos de rir. Mas o ingênuo comentário de Ana levantou uma questão séria.
- Do que vamos viver? – perguntei.
- Vamos nos virar bem – disse mamãe, lançando um olhar a papai. – Vamos começar trabalhando no sítio do vovô até ele ficar bem, e, se depois as coisas não correrem bem entre nós e ele, então talvez compremos uma fazendinha para nós mesmos. Uma vantagem de ter morado aqui na cidade por tanto tempo nós não podemos negar: fomos muito bem pagos e conseguimos economizar bastante. E no Wyoming não teremos de pagar aluguel ridiculamente alto nem absurdas mensalidades privadas. Estou planejando plantar frutas e verduras, e isso vai dar tempo ao papai fazer o que ele sempre sonhou fazer.
- O que é? – indaguei.
- Escrever um romance – respondeu ela.
Olhei na direção de papai. Ele havia corado.
- Sempre foi o meu sonho secreto – confessou com doçura e certa timidez. – E, se não der certo, se eu descobrir que não consigo escrever o meu Best-seller e se não conseguirmos plantar a nossa própria comida, então tenho certeza de que sempre haverá trabalho para um advogado em qualquer lugar. Ou então poderia ensinar na escola local. Há inúmeras opções.
- Para você, talvez – disse eu. – Mas o que há para mim lá?
- Vários garotos e garotas cujos valores ainda não foram para o brejo – replicou mamãe. – A chance de perceber que dinheiro não compra felicidade. A chance de crescer como uma pessoa autêntica, e não como uma burguesinha sofisticada e falsa. Quem sabe quantos talentos seus você poderá descobrir quando tiver uma chance de tentar coisas novas?
- Claro – retruquei com amargura -, como, por exemplo, bater manteiga e tirar leite de vacas.
- Vacas? – perguntou Ana toda excitada. – Vamos ter vacas?
Mamãe sorriu ao ver a carinha animada de Ana.
- Vai poder ter quantos bichinhos de estimação quiser, amorzinho. Vacas, ovelhas, porcos, coelhos... tudo o que quiser.
Ana deslizou do banco para o chão.
- Estou indo empacotar as minhas coisas – comentou. – Podemos ir amanhã?
- Amanhã não – respondeu meu pai, erguendo Ana em seus braços. – Mas muito, muito em breve. Assim que conseguirmos um inquilino para este apartamento e deixarmos tudo em ordem. Não posso esperar para ver a cara dos meus sócios quando eu contar a eles que estou indo embora.
Olhei para a cara excitada e feliz de papai, em seguida para a de mamãe, e depois para a de Ana. Pelo menos Daniel não parecia estar pulando de felicidade. Talvez estivesse se lembrando da vez em que tinha vomitado quando o vovô o obrigara a comer nabos plantados em casa.
Senti um grande soluço chegando.
- Não consigo acreditar em vocês, gente – eu disse através da bola que se formara em minha garganta. – Não consigo acreditar que estejam fazendo isso comigo. Eu não vou! Vou encontrar um jeito de ficar aqui, nem que seja a ultima coisa que eu faça sobre a Terra!

Nenhum comentário:

Postar um comentário