terça-feira, 10 de abril de 2012

Coração Dividido


Acordei com o brilho da luz do sol, que pintava uma listra amarela na parede do meu quarto. A parede era forrada com um papel cor-de-rosa de desenho floral, que resplandecia com a luz solar. O ar estava decididamente frio e seco, e debaixo da colcha tão quentinho e aconchegante, que eu não sentia o menor desejo de me mexer. Virei à cabeça, observando os detalhes do quarto. Havia um armário no canto, uma velha e surrada arca, e uma bela escrivaninha com agarradores de metal e tampa do tipo esteira contra a parede. Um tapete tecido à mão estendia-se no chão, e a janela era coberta por uma graciosa cortina de laços. Era tudo tão campestre, e tentei imaginar o meu sofisticado pai advogado vivendo naquele quarto. Com certeza não havia sobrado nenhum traço da personalidade adolescente dele naquele ambiente: nenhuma bandeirola de times de beisebol nas paredes, nenhum pôster de mulheres ou cachorros, nada enfim que pudesse revelar o tipo de pessoa que ele devia ter sido.
Ainda agarrada à colcha, me sentei apenas o suficiente para poder enxergar o que havia do outro lado da janela, e tive de suspirar com o que vi. O céu estava profundamente azul, límpido, e as árvores atrás da casa era uma espetacular mistura de vermelho e dourado. Por trás delas uma série de pradarias se enfileirava até chegar num rio margeado por árvores, e por trás do rio as montanhas se elevavam até os picos já brancos de neve. Eu me perguntei se teria nevado lá em cima durante a noite. A neve parecia fresca, tão branca e brilhante a luz do sol que quase doía olhar para ela. E, enquanto eu admirava tudo isso, um cavaleiro solitário apareceu a galope através dos prados. A crina do cavalo tremulava ao vento, e o cowboy parecia bastante à vontade em cima da sela. Era quase como se eles fossem uma só criatura. Quando se aproximaram mais, reconheci o cavaleiro: Arthur Aguiar, o rapaz que andara caçando sapos para me dar as boas-vindas. Desviei o olhar da janela, subitamente desinteressada pela vista.
Senti um aroma de café e estiquei o braço para pegar o meu roupão.
Vovô estava acordado, mancando para lá e para cá na cozinha.
- O café está pronto – disse ele assim que me viu, apontando para o bule em cima do fogão.
- Obrigada, mas eu não tomo café de manhã.
- Não toma? – perguntou ele, parecendo aterrorizado.
- Bem, gosto de tomar um cappuccino ou um moncha na cafeteria com os meus amigos em outras horas do dia. Mas no café da manhã eu não gosto.
Ele me olhou como se eu estivesse falando uma língua estrangeira e balançou a cabeça.
- Cresci tomando uma bela caneca de café forte para começar o dia e não acho que isso tenha me feito mal algum – disse ele. – Então o que você toma normalmente? Chá?
- Suco de laranja fresco. A gente tem um espremedor em casa.
- Bom, pois hoje vai ser café ou nada – retrucou-o. – Acho que vai ter de aprender a mudar os seus hábitos extravagantes se for morar aqui.
- Não pretendo ficar aqui mais do que o estritamente necessário – repliquei.
- Oh...
- Para começar, eu nem queria vir para cá – declarei. – E continuou não querendo ficar aqui. Estou contando os dias até eles me deixarem voltar para Nova York...
Ele sorriu.
- E o que te dá tanta certeza de que vai querer voltar correndo para aquela ratoeira?
Olhei de esguelha.
- E o que há aqui para mim? Vou morrer de tédio – respondi.
Ele sorriu como se soubesse de algum segredo, e naquele momento decidi que o odiava. Eu já o detestara quando era pequena e ele caçoara de mim por ter medo das coisas. Ele não tinha evoluído nada. Não me surpreendia nem um pouco que papai tivesse ido embora assim que pudera. A única coisa que eu não conseguia entender era por que raios ele tinha querido voltar!
O grande relógio da sala bateu às sete horas.
- Sete horas! – exclamei. – Estou em pé as sete, e nem sequer é dia de aula!
- Já é tarde para estas bandas, acordo às cinco, como a maioria das pessoas por aqui. As tarefas do sítio têm de ser feitas cedo.
Naquele momento o resto da família chegou à cozinha em grupo, todos vestido com jeans e suéteres.
- Estou congelando aqui embaixo – disse mamãe. – Estava tão quentinho na cama, debaixo da colcha!
- A minha cama estava quente como um forno – disse Ana.
- Se vocês querem mais quente aqui embaixo, alguém vai ter de ir lá fora cortar lenha – comentou vovô.
- Esse é um trabalho para os homens – afirmou papai. – Vamos lá Daniel, venha comigo.
Eles colocaram seus casacos, e logo os sons de machado batendo na madeira infiltraram pela janela. Do machado e de inúmeras exclamações impublicáveis de meu pai e de risadas histéricas de Daniel. Eu estava louca para ir lá fora assistir a tudo, mas fiquei com receio de que meu pai se distraísse e arrancasse um dedo do próprio pé com uma machadada. Então nós esperamos. Mamãe cozinhou um mingau de aveia e farelo de trigo, e vovô fez algumas torradas, e eu até bebi um copo de café para me aquecer.
A porta se abriu e “os homens” entraram papai com uma braçada de toras e Daniel com alguns gravetos.
Vovô começou a rir.
- Em todo esse tempo só conseguiram cortar esse pauzinhos?
- Perdi a prática – disse papai tranquilamente. – Faz vinte anos que não faço isso, lembra? Nós não temos de cortar muita lenha em Nova York. Mas no finalzinho eu já estava retornando a velha forma.
- Acho que vocês se saíram maravilhosamente – elogiou mamãe. – Os dois.
- Ensine o menino a rachar lenha, Billy – recomendou vovô. – Vai ajudar a fortalecer esses bracinhos de mosquito.
- Vou fazer isso todo dia – disse Daniel, orgulhoso. – Assim, quando nós voltamos à Nova York, vou poder dar uma surra em todos aqueles garotos que roubaram o meu dinheiro do lanche.
- Todos nós precisamos fortalecer os músculos se quisermos ser de alguma utilidade aqui – observou papai. – Eu, por exemplo, não tenho forca suficiente nem para laçar um novilho.
- Eu também tenho de fortalecer os meus músculos se quiser plantar uma horta – concluiu mamãe.
Olhei para um e para outro, atônita. Eles estavam realmente desejando pôr à mão na massa. Eles estavam realmente entusiasmados!
- Acho que vou lá para cima terminar a minha carta para o Chay – acabei falando.
Mas, quando cheguei ao quarto, achei difícil escrever. Sentei-me na velha escrivaninha de papai, olhando para as montanhas pela janela, e tentei pensar em alguma coisa boa quanto a estar no Wyoming. Eu me perguntei como era possível que o resto da minha família estivesse tão interessado naquele tipo primitivo de vida. “Talvez haja neste exato momento uma família civilizada e normal em algum ponto de Nova York com uma filha que andar por ai dizendo ya-hu.”
Subitamente senti uma necessidade urgente de sair de casa. Coloquei minha malha mais quente, calças, botas, e me dirigi para o andar de baixo.
- Estamos todos indo fazer compras em Cody, Lua – disse Ana. – Você quer vir?
A idéia de fazer compras numa cidadezinha nula como Cody me deprimiu ainda mais.
- Não, obrigada – respondi. – Vou dar uma caminhada.
Peguei a estrada na direção oposta àquela para a qual nós tínhamos chegado no dia anterior e me dirigi para o alto do vale. Havia campos verde-dourados de ambos os lados da estrada, que logo se encontravam com o rio. Eu podia ouvi-lo borbulhando atrás de mim. A chuva forte do dia anterior devia tê-lo enchido, porque agora ele lambia o topo das bordas. Era o lugar mais solitário que eu tinha visto em minha vida. Não havia casas, nem pessoas, nem carros, nem sons além dos suspiros do vento e os gritos dos pássaros. Nada. Eu nunca estivera tão sozinha.
Já devia ter andado quase dois quilômetros quando escutei um som atrás de mim. Em meio ao barulho da correnteza pude ouvir o farfalhar do mato alto se movendo e em seguida uma bufada que quase me fez desmaiar de susto. Virei-me rapidamente, bem a tempo de ver um enorme animal a apenas alguns metros de mim, com o corpo ainda semi-oculto pelo capim alto. Ele tinha chifres enormes e pontudos, e continuava a bufar para mim de uma maneira muito pouco amigável. Eu não sabia muito a respeito de fazendas e vida campestres, mas já vira alguns filmes de touradas. Sabia muito bem o que os touros fazem quando não gostam de você. Justo quando estava pensando nisso, o animal abaixou a cabeça, emitiu um som longo, grunhiu e começou a vir na minha direção.
Não esperei mais nem um segundo. Comecei a correr o mais rápido que pude pela estrada.
- Socorro! Socorro! – gritei.
Nem sei quem esperava que pudesse me ouvir naquele lugar selvagem e solitário. Nem sei o que pretendia fazer. Só sei que queria encontrar um lugar seguro antes que os chifres do touro me alcançassem. Mas não havia nenhum lugar seguro. Uma cerca de arame farpado corria pelos dois lados da estrada. Comecei a procurar com o olhar por uma porteira que eu pudesse saltar rapidamente – e essa seria uma vez em que todos os meus esforços para aprender ginástica olímpica teriam sido muito compensadores –, mas nenhuma porteira apareceu. Podia ouvir claramente as pesadas batidas das patas do touro na terra lamacenta atrás de mim se aproximando cada vez mais. Ele soltava uns estranhos gemidos enquanto corria, e eu já estava esperando sentir a qualquer momento os chifres da fera penetrar na minha carne como uma lâmina de aço.
Uma imagem de meus pais encontrando meu corpo pisoteado e mutilado passou pela minha mente. “Se nós não a tivéssemos trazido para cá...”, diriam eles. “Se pelo menos nós a tivéssemos deixado na segurança de Nova York...”.
Mas não tinha mais tempo nem energia para pensar nisso, porque o touro me alcançara.
Já podia sentir o ar quente dele no meu pescoço, e eu mesma não tinha mais ar nem sequer para gritar por socorro.
Então, de repente, ocorreu o milagre. Escutei o som do galope de um cavalo se aproximando rapidamente.
- Socorro! Aqui! – consegui gritar.
Tropecei e olhei para cima, sentindo um enorme alivio ao ver que era Arthur.
- Ajude-me! – suspirei quase sem voz. – Touro louco... Ali... Quase me chifrando.
Instantaneamente Arthur ficou em alerta.
- O touro está solto? Onde? – perguntou ele, alarmado.
- Bem atrás de mim! – gaguejei.
Arthur devia ser idiota ou cego. Eu ainda podia sentir o bafo do touro no meu pescoço!
- Bem atrás de você? – disse ele, começando a rir. – Você quer dizer isto aqui?
Ele fez seu cavalo andar a passo até o lado do escuro monstro e deu um amigável tapinha nas costas da fera.
- Esta aqui é a velha Manteiga – revelou-o.
- A velha Manteiga?
- Com certeza. Não machucaria nem uma mosca. Meu pai deveria ter abatido a Manteiga há alguns anos, mas ele a criou desde pequenininha e ficou apegado. Diz que ela lhe deu bons novilhos e um ótimo leite, e que agora é como um bicho de estimação. Fica solta perambulando por ai, até encontrar alguém que faça um carinho nela. Às vezes pode chegar a ser maçante. Já me seguiu até a escola uma vez.
Ele moveu seu cavalo ao longo do corpo de Manteiga.
- Vamos lá, garota! Para casa! – ordenou, dando-lhe um ressoante tapa na anca, o que a fez trotar de volta pelo caminho por aonde viera me seguindo.
Enquanto isso acontecia, tive tempo de olhar e ver o que não tinha visto antes: por trás da “feroz” cabeça havia um gordo e flácido corpo de vaca. Fiquei sem saber o que dizer de tanta vergonha.
- Há somente um touro com que você tem de se preocupar por aqui – continuou Arthur. – É o velho Barnaby, que fica no pasto perto do rio.
- É um erro fácil de cometer – disse eu, desafiadora. – Só tinha visto a cabeça dela. O resto do corpo estava oculto no meio do capim. Como eu poderia saber?
Arthur me olhou com um ar gozador.
- Um erro fácil para uma garota da cidade – replicou ele.
Agora, na brilhante luz do sol, eu podia vê-lo com clareza pela primeira vez. Cabelos castanhos escapando por debaixo do chapéu de cowboy, uma pele morena e uns chamativos e cintilantes olhos castanhos. Tive de admitir que ele tinha crescido bastante com relação ao menino mirrado que ficava na minha memória. Arthur era decididamente forte. Apesar do frio, vestia somente uma camiseta de maga comprida ejeans, e a camiseta aderia-se aos músculos dele como se fosse uma segunda pele.
- É melhor eu voltar – murmurei, por não saber o que mais dizer e por querer escapar o quanto antes daquele sorriso zombeteiro.
- Acho que a gente vai se ver bastante – disse Arthur – já que vamos pegar o mesmo ônibus para a escola todas as manhãs. Talvez isso dê a chance de ensinar a você a diferença entre um touro e uma vaca!
- Obrigada, mas não tenho a mínima intenção de me sentar perto de você no ônibus – disparei. – Ainda tenho uma certa aversão a sapos.
O sorriso dele cresceu ainda mais.
- Ah, desisti de sapos há alguns anos – disse ele. – É coisa de criança.
- Fico feliz em saber.
- Agora prefiro as cascavéis.
- Puxa, vocês garotos do campo são tão divertidos – repliquei. – Não sei como vou fazer para agüentar o agito daqui.
Ele não capturou o meu sarcasmo.
- É, acho que devemos mesmo ser mais interessantes do que aqueles almofadinhas da cidade. Eles já nascem de paletó?
Eu estava ficando mais irritada a cada segundo. “Espere só até esse caipira deste fim de mundo sentir o gostinho amargo de um bom insulto nova-iorquino, do velho e bom sarcasmo nova-iorquino”, pensei. “Aí ele vai saber o que é bom para a tosse.”
Infelizmente eu ainda estava cansada da viagem do dia anterior e minha mente devia estar um pouco atordoada por causa do encontro com o touro, desculpe, vaca. Não consegui me lembrar de nada muito espirituoso.
- Com licença, seu cavalo está bloqueando a minha passagem – disse eu com frieza glacial. – Meus pais já devem ter voltado das compras. Ele girou seu cavalo para o lado e voltou em trote fácil pela trilha por onde viera, ao mesmo tempo que eu caminhava para casa com o máximo de dignidade que consegui reunir.

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