sexta-feira, 6 de abril de 2012

Coração Dividido



Estava tão transtornada que não consegui falar com Chay nem com Sophia quando me telefonaram mais tarde, naquele mesmo dia. Meu pai enfiou a cabeça no meu quarto para me passar o recado de que minha turma ainda estava com a intenção de ir ao festival de cinema italiano naquele tarde, e que eu poderia encontrá-los no cinema ou no Fiorelli, depois do filme.

- Ah é? – disparei. – E o que disse a eles? Que ficaria de castigo até me encontrar a salvo entre as manadas de búfalos do Wyoming?
Meu pai sorriu.
- Pode se encontrar com os seus amigos se quiser, Lua. Não somos monstros.
Eu me decidi contra o filme italiano. Sabia que era sobre uma mulher que se apaixonava por um soldado que parte para a guerra e é morto, e tive um péssimo pressentimento que iria chorar durante toda a sessão. Mais me esforcei e consegui me refazer um pouco. Joguei bastante água fria na cara e passei um pouco de batom, para pelo menos voltar a parecer humana o suficiente para me encontrar com os meus amigos no Fiorelli.
Eles estavam sentados numa mesa de canto e, quando cheguei, todos me olharam com compaixão. Mel saiu às pressas de seu lugar para me abrir espaço ao lado de Chay.
- Você perdeu um bom filme hoje, Lua. Um filme tão triste... – informou.
Eu me esforcei para dar um meio-sorriso enquanto me espremia ao lado de Chay.
- Deve estar numa encrenca séria – disse Sophia. – Seu pai foi frio como um iceberg quando liguei hoje de manhã.
- É, ele me disse que você não estava falando com ninguém – arremedou Chay. – Sinto muito por ter ficado tão encrencada, Lua. Nunca imaginei que seus pais fosse ficar tão enfurecidos só por causa de uma simples festinha.
Tentei responder a ele, mas em vez disso tive de me esforçar para engolir o choro. Passei o olhar pelo Fiorelli, reparando nos pôsteres de óperas italianas penduradas nas paredes, nas velas cor-de-rosa nos candelabros e na voz de Pavarotti soando baixinho nos alto-falantes, abafando um pouco o rouco nervoso do trânsito que vinha do exterior. As luzes de uma placa luminosa do outro lado da rua resplandeciam. Havia um vendedor de kebab num canto, e o Davi’s Deli, onde se faz o famoso pastrame do David, no outro canto. Aquilo era Nova York, e era aquilo que eu amava.
- Você está mesmo numa fria, Lua? – perguntou Chay, tocando gentilmente na minha mão. – Quero dizer, puseram você de castigo, ou algo parecido?
- Pior do que isso – comecei. – Vão me levar embora para o Wyoming.
- Vão o que? Por quanto tempo?
Todos os meus amigos estavam agora me olhando em estado de choque.
- Para sempre – disse eu com tristeza.
- Não posso acreditar! – exclamou Chay. – Você quebra uma regrinha de nada e mandam você para o Wyoming?
- Pois é melhor acreditar, porque é verdade – repliquei. – Meus pais disseram que andaram pensando em como fazer para resolver o problema do meu avô, e essa história da festa ajudou a chegar a uma decisão.
- Só por causa do seu avô? – disparou Mel. – Ninguém larga tudo e se muda para o Wyoming só porque alguém quebrou uma perna!
- Essa é uma das razões – expliquei. – Querem nos tirar da cidade e nos levar para um lugar onde a vida seja simples.
- Você deve estar brincando – disse Rayana, arregalando os olhos.
- Não podem fazer isso, Lua – ponderou Sophia calmamente jogando os cabelos para trás. – Vá falar com o advogado infantil na escola. Diga a ele que os seus direitos estão sendo violados. Você também tem direito, sabia?
- E os psiquiatras já provaram que é prejudicial mudar um aluno de escola e de cidade no meio do colegial – emendou Rayana. – Eles estarão realmente pondo em risco a sua saúde mental, Lua.
- A Constituição salvaguarda o direito à vida, à liberdade e a busca da felicidade – acrescentou Micael. – E eu diria que as suas chances de encontrar a felicidade em Nebraska, ou seja, lá onde for são zero.
- Wyoming – corrigi.
- Dá na mesma – replicou ele. – Uma vez que você sai da Pensilvânia não há mais nada até chegar à Califórnia. Já atravessei o país de carro uma vez. Pode acreditar em mim.
- O Wyoming é legal – comentou Rayana. – Jackson Hole parece ser um barato. Vi em A vida dos ricos e famosos, na TV. Eles têm fontes de água quente naturais e trenós puxados por cavalos. Muita gente famosa vai lá.
- A gente poderia ir visitar você nas férias, para esquiar – disse Sophia, subitamente tão entusiasmada. – Eu iria adorar me deitar numa nascente de água quente rodeada por um monte de neve. Que romântico!
- Nós não estamos indo morar em Jackson Hole. – esclareci com amargura. – Estamos indo morar no cafundó-do–judas, num lugar onde nunca ninguém sequer ouviu falar. Num sítio. A pior coisa que poderia acontecer a alguém.
Eles voltaram a ficar com pena de mim.
- Então simplesmente recuse-se a ir – disse Sophia. – O que eles podem fazer? Levá-la à força em cima dos ombros?
- Meu pai disse que crianças com menos de dezoito anos têm de ir aonde seus pais forem, gostem ou não – expliquei.
- Não se você fizer o maior fuzuê – opinou Mel. – Quando não me deixam seguir o meu caminho, ameaço parar de comer. Meus pais têm tanto medo de que eu entre em anorexia que acabam cedendo.
- Só tenho mais umas duas semanas antes de partimos – contei. – Não acredito que conseguiria ficar desnutrida a ponto de beirar a morte em tão pouco tempo.
- Simplesmente fuja de casa – disse Sophia, como se fazer isso fosse a coisa mais simples do mundo. – Esconderíamos você, não é, gente?
- Você terá sempre o meu quarto a disposição, Lua – disse Chay, me dando um sorriso doce e malicioso.
- Não, falando sério – continuou Sophia. – Se não quer ir, não vá. Você já é quase adulta, e pode morar com algumas de nós. Esconderíamos você até eles irem embora.
- Não poderia fazer isso – disse eu, sacudindo a cabeça. – Eles ficariam doentes de preocupação por minha causa.
- Eles merecem, por não se preocuparem com a sua felicidade – disse Mel. – Quero dizer, ir para o Wyoming é pior do que uma sentença de morte. Você vai morrer de tédio lá.
- Pense a respeito, Lua – disse Sophia. – Nenhuma loja num milhão de quilômetros quadrados, nenhum café, e você vai ter de se conformar com dançar com uns caipiras calçados com aquelas enormes batas decowboy – ela fez uma pausa e começou a rir. – E vai ter de aprender a dizer ya-hu e iuuiii!
- Pode crer que não pretendo me aproximar o suficiente de nenhum garoto no Wyoming para que ele possa dançar comigo – repliquei – e que não vou aprender a dizer ya-hu. Na verdade, estou planejando me deitar em minha cama e ficar olhando para o teto até eles perceberem o quanto estou infeliz. Então vão ter de me mandar de volta para cá.
Chay estava um bom tempo olhando para baixo, na direção de seucapuccino. Então levantou a vista para mim com um grande sorriso no rosto.
- Anime-se, Lua – disse ele. – Você não acredita mesmo que seus pais vão agüentar ficar por lá mais do que uns dois meses, acredita? Eles também estão acostumados com Nova York, lembre-se. Podem achar lindo morar num sitio por algumas semanas, mas espere até nevar e se verem entalados num lugar a dez quilômetros da cidadezinha mais próxima e com um único canal de TV. Aposto que para o Natal vocês já estão de volta.
Olhei para ele com uma expressão esperançosa.
- Você acha mesmo?
- Estou contando com isso – ele respondeu com um movimento afirmativo de cabeça. – Se não, quem vai me aquecer nesse inverno?
Aquilo foi a coisa mais doce que alguém já me dissera, e me senti perigosamente perto das lágrimas de novo.
- Espero, espero mesmo que você esteja certo, Chay – repliquei.
Gastei as ultimas semanas em Nova York me fartando de fazer tudo que eu sempre havia desejado mais nunca fizera até então. Brendan fez tudo junto comigo, me acompanhando a todos os nossos programas favoritos e vendo todos os filmes possíveis.
- Assim pelo menos não vai morrer de fome cultural – ele brincou.
Que semanas maravilhosas! Chay e eu começamos realmente a nos entrosar, a nos conhecer. Como eu iria conseguir deixá-lo?
Em minha última ida à Dover School passamos juntos um perfeito dia de outubro. A temperatura estava quente sem ser abafada, e as folhas começavam a ficar douradas nas árvores do Central Park. Passeamos pelo parque juntos, por entre as charretes carregadas de turistas, puxadas por cavalos saltitantes. O Central Park nunca me parecera tão adorável. Nova York nunca me parecera um lugar tão perfeito para se morar. O Central Park ficava no fim do meu quarteirão, e eu quase nunca arranjava tempo para passear nele. Mas naquele dia saboreei cada árvore, cada pedra, cada fonte, dizendo a mim mesma: “Você nunca mais vai ter tudo isso”.
- Não consigo acreditar que vou estar na estrada para o Wyoming amanhã de manhã – desabafei.
- Nem eu – disse Chay. – Bem agora, que estamos começando a nos conhecer, você vai embora. Não é justo.
- Nunca senti nada assim por alguém, Chay – revelei.
- Sei o que você quer dizer. Você é mesmo muito especial, Lua – confessou, pegando gentilmente na minha mão. – Dizer adeus é duro para mim também.
- Vou pensar em você todos os dias – confessei, sentindo uma lágrima rolar pelo meu rosto.
- Ei, calma – pediu ele -, você não esta indo para o fim do mundo. Existem telefones no Wyoming. Eu vou te ligar todas as noites.
- Isso vai custar uma fortuna.
- Não tem importância – replicou Chay. – Minha irmã liga a cobrar da universidade a toda hora. Supõe-se que eu tenha direito aos mesmos privilégios. E também existem os aviões. Posso pegar um e dar um pulo lá para te ver.
- Sério?
- Claro. E você também poderia pedir aos seus pais para deixarem você voar para cá de vez em quando, nos feriados e nas férias.
- É mesmo... – me animei, com uma frestinha de luz surgindo na escuridão do meu desespero. – Eles têm obrigação de me permitir isso, não têm? Não podem me manter longe dos meus amigos para sempre.
- É, como eu disse – continuou Chay -, quando a primeira nevada vier, quando os canos congelarem e não conseguirem encontrar umfettuccine no supermercado local, aposto que eles vão querer correr de volta para a civilização. Na próxima primavera você já vai até ter se esquecido de que um dia esteve fora de Nova York. Vamos assistir a todos os shows novos na Broadway que tiver perdido e patinar no Central Park quando as folhas já estiverem começando a nascer nas árvores novamente.
- Ah, Chay, você acha mesmo?
Ele sorriu para mim.
- Vou segurar na sua mão e, quando chegarmos perto de uma árvore enorme como essa, vou pegar você nos meus braços e te beijar, exatamente assim.
Os lábios deles encontraram os meus, e ficamos lá nos beijando, bem apertadinhos.
- Isto é – continuou, brincando, quando já nos apartávamos -, se você não tiver me esquecido até lá. Se não tiver encontrado um cowboy de quem goste mais do que de mim...
- Não brinque com coisas sérias, Chay – disse eu, brava. – Isso nunca vai acontecer.
Caminhamos de volta para casa, de mãos dadas. Depois de um beijo final de despedida, fiquei olhando enquanto ele se afastava lentamente. Era a última vez que eu o via, sabe lá por quanto tempo. E eu queria me lembrar daquele momento para sempre.
Naquela noite papai entrou em meu quarto no momento em que eu tentava enfiar o resto das minhas coisas numa grande bolsa de náilon que já estava quase estourando.
- Lua eu sei que você está louca de raiva pelo que nós estamos fazendo com você... – começou ele. – Sei que você não quer ir, mas, por favor, acredite que estamos fazendo o que achamos que é o melhor para nós todos.
Continuei tentando enfiar um par de sapatos num lugar não existente no canto da mala.
- Quem sabe? – continuou ele. – Pode ser que você acabe gostando de lá...
- Está bem, pai.
- Você pode até descobrir ser uma pessoa que nunca imaginou. Alguém que não precisa de cartões de crédito, roupas caras e festas selvagens para se divertir.
Finalmente consegui enfiar os sapatos na mala e fechei o zíper.
- Sua mãe e eu temos andado preocupados com o quanto essa história de mudança está afetando você – prosseguiu ele – e nós decidimos assumir um compromisso.
Ergui os olhos para ele, cheia de esperanças.
- Decidimos que primeiro você deve tentar para valer de adaptar à nova vida. Se no fim do ano letivo você ainda tiver desesperadamente infeliz no Wyoming, então daremos um jeito de mandá-la de volta a Nova York. Está bem assim?
- Melhor do que nada. E aí eu voltaria para a Dover School?
- Não disse isso. Teríamos de pensar nesse detalhe com bastante cuidado. Mais você tem de me prometer que vai tentar de verdade dar uma chance ao Wyoming: adaptarmos-nos a um novo estilo de vida vai ser um desafio para todos. Vamos ter de colaborar uns com os outros. Certo, Lua?
Dei um grunhido que poderia ser interpretado como um sim, e ele saiu do meu quarto. Mas uma nova luz de esperança começara a brilhar em minha mente. Se eu conseguisse sobreviver ao resto ano letivo...

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