- Esta via ser a cidadezinha mais próxima a nós – disse papai quando entramos em Cody um vilarejo de sete mil habitantes.
Parecia o próprio Velho Oeste sem tirar nem pôr, como se Butch Cassidy e Sundance Kid fossem aparecer cavalgando pela rua principal a qualquer momento. Havia no máximo uns dois restaurantes e uns três motéis.
Estávamos na estrada havia uns quatro dias e não tínhamos visto nada além de campo aberto e muitas vacas, e já estávamos todos ficando cansados. Tinha acabado de começar a chover. Todo mundo queria dar uma parada, exceto papai, ansioso para chegar logo ao sítio. Ele não me deixou parar nem sequer para ver se havia um cinema ou um barzinho na cidade, apesar de eu suspeitar que não havia nenhum.
Ana estava ficando cada vez mais lamurienta. Ela havia visto uma placa que dizia “Bem-vindo a Cody, o portão de entrada do Parque Nacional de Yellowstone”, e estava com medo, achando que ia ter de viver entre gêiseres e que poderia ser morta pelos vapores ferventes. Daniel começou a recitar estatísticas a respeito do número de ataques de ursos-pardos a seres humanos que tinha ocorrido recentemente em Yellowstone. Até minha mãe ficou olhando apreensiva e longamente para trás quando caíamos da cidadezinha.
Ana estava ficando cada vez mais lamurienta. Ela havia visto uma placa que dizia “Bem-vindo a Cody, o portão de entrada do Parque Nacional de Yellowstone”, e estava com medo, achando que ia ter de viver entre gêiseres e que poderia ser morta pelos vapores ferventes. Daniel começou a recitar estatísticas a respeito do número de ataques de ursos-pardos a seres humanos que tinha ocorrido recentemente em Yellowstone. Até minha mãe ficou olhando apreensiva e longamente para trás quando caíamos da cidadezinha.
- Acho que é mesmo melhor nós tentarmos chegar à casa do vovô antes de escurecer – disse ela.
- As montanhas já estão bem na nossa frente agora – observou papai, animado.
- Não estamos vendo nada – murmurou Daniel.
- Não estamos vendo nada – murmurou Daniel.
- Isso é porque as nuvens estão baixas hoje. Num dia claro podem-se ver daqui os picos nevados. É uma vista linda – disse papai.
Ninguém acreditou nele. O mundo inteiro parecia plano e cinza. Estivera tentando lembrar-se da minha última viagem à casa do vovô e não me lembrei da região ser plana e aberta. Na verdade, lembrei-me de um monte de árvores enormes que faziam barulhos assustadores quando o vento soprava e de um rio de correnteza rápida em que eu tinha caído certa vez, por estar tentando seguir o menino que vivia um pouco mais abaixo na estrada, um calafrio ao me lembrar do pânico que me produzira àquela coisa fria e deslizante presa dentro da minha camiseta. Se aquilo era o que os garotos da região faziam para se divertir, então seria melhor eu tratar de vestir roupas de gola alta e apertada durante todo o tempo em que estivemos no Wyoming.
Abandonamos o que era ridiculamente chamado de “estrada principal” e entramos numa ainda menor. A estradinha começou a subir. Logo as árvores apareceram e depois um riacho. As curvas ascendentes das montanhas se mostraram com clareza, cobertas por um negro manto de pinheiros e por vacas e cavalos que estavam pastando nas encostas.
- Preste atenção para não passar da estrada dessa vez, Billy – mamãe disse a papai.
- Eu morei aqui por dezoito anos, Maria – papai retrucou.
- Eu morei aqui por dezoito anos, Maria – papai retrucou.
- Eu sei, mas da última vez você passou da entrada, lembra? Fomos parar quase no topo de uma montanha.
- É logo depois da cerca de madeira – afirmou papai. – Logo depois do posto de gasolina.
Uma placa ao lado da estrada dizia “Indian Falls, população: 625.”
Uma placa ao lado da estrada dizia “Indian Falls, população: 625.”
- Onde fica essa cidade? – perguntou Daniel, desconfiado.
Estava me perguntando a mesma coisa. Através da chuva eu podia ver algumas casas rodeadas de árvores, mais alguns cavalos, uma igrejinha branca, um armazém, uma loja de ferragem e ferramentas com um anúncio de equipamentos de pesca, um posto de gasolina com dois ou três carros parados em frente e um bonito sobrado com uma cerca de madeira.
- Indian Falls é isso ai? – perguntei.
- É isso ai. Há várias comunidades desse tipo ao longo dessa estrada, e acho que há alguns ranchos comunitários também – explicou papai.
- Ya-hu! – disse eu sarcástica, já experimentando o meu novo vocabulário. – Que fascinante! Não vejo a hora de conhecer melhor a região e seus habitantes!
Saímos da estradinha de asfalto e começamos a andar no meio de um estreito vale. A estrada agora era de terra. Já chovia realmente forte, com o vento batendo contra o pára-brisa e dificultando muito a visibilidade.
Saímos da estradinha de asfalto e começamos a andar no meio de um estreito vale. A estrada agora era de terra. Já chovia realmente forte, com o vento batendo contra o pára-brisa e dificultando muito a visibilidade.
- Estou com frio. Quero ir para casa – gemeu Ana.
- Não se preocupe meu bem, já estamos quase lá – disse papai com suavidade. – Aposto como o vovô vai estar com um grande fogo aceso na lareira e um delicioso jantar quentinho esperando por nós.
As árvores se sacudiam loucamente ao longo da estrada, e papai teve de acender os faróis de neblina. Então, de repente, ele disse:
- Cá estamos, em casa por fim.
Fomos subindo aos trancos e barrancos por um caminho sulcado por pneus de carros, no meio de árvores escuras e bamboleantes. No meio daquela escuridão mal conseguíamos divisar as formas de uma torta casa de fazenda. Uma luz fraca brilhava nas janelas do andar de baixo. A casa era bastante grande, e parecia o lugar mais solitário do mundo. O vento uivava quando estacionamos o carro e descemos, quase nos levando pelos ares enquanto subíamos os degraus da varanda. A grande lareira acesa e o jantar quente de fato soavam como uma ótima idéia naquele momento.
A porta da frente se abriu e um facho de luz se precipitou para fora. Um homem alto e musculoso, com o rosto escondido por um chapéu de cowboy, surgiu no umbral e ficou parado, me olhando enquanto eu era varrida ao longo da varanda por uma forte rajada de vento.
- Upa! – gritei enquanto lutava para segurar minha bolsa e meu porta CD.
Quando recuperei o equilíbrio me agarrando a uma das colunas da varanda, reparei que ele não estava usando um gesso na perna. Ele estava andando! Tinha sido tudo um mal-entendido, e poderíamos voltar imediatamente para casa!
Quando recuperei o equilíbrio me agarrando a uma das colunas da varanda, reparei que ele não estava usando um gesso na perna. Ele estava andando! Tinha sido tudo um mal-entendido, e poderíamos voltar imediatamente para casa!
- Vovô! – gritei. – Você está andando! Isso é um milagre!
Pude ver uns dentes brancos brilhantes debaixo daquele chapéu.
- Sinto muito desapontá-la, mais isso não é um milagre e eu não sou o seu avô, apesar de dizerem que pareço bastante maduro para minha idade – respondeu uma voz de rapaz.
Dei mais uns passos na direção dele. Quando as luzes do carro não estavam mais me ofuscando, pude ver que se tratava de um jovem cowboy, alto, e com um olhar amigável. Ele ergueu o chapéu para mim e o recolocou na cabeça com um só gesto.
- Sou vizinho do Sr. Blanco. Meu pai pediu para eu vir aqui e dar uma olhada se ele não estaria precisando de mantimentos, estava planejando ficar mais um pouco para ver se precisava de ajuda em alguma outra coisa; mas, já que a família veio para tomar conta dele, acho que já vou indo para casa. Tenho certeza de que vocês não querem nenhum estranho zanzando por aqui. Bom, meu nome é Arthur. E você é...?
- Lua – respondi, tentando fazer meus dentes pararem de bater por causa do frio e da chuva.
- Sou vizinho do Sr. Blanco. Meu pai pediu para eu vir aqui e dar uma olhada se ele não estaria precisando de mantimentos, estava planejando ficar mais um pouco para ver se precisava de ajuda em alguma outra coisa; mas, já que a família veio para tomar conta dele, acho que já vou indo para casa. Tenho certeza de que vocês não querem nenhum estranho zanzando por aqui. Bom, meu nome é Arthur. E você é...?
- Lua – respondi, tentando fazer meus dentes pararem de bater por causa do frio e da chuva.
- Lua! – repetiu, com uma expressão subitamente iluminada. – Agora me lembro! Nossa, você sem dúvida cresceu bastante desde a última vez em que a vi. Lua... Isso mesmo. Sabia que a conhecia de algum lugar.
Estava tentando desesperadamente me lembrar de onde o tinha visto antes quando, de repente, uma imagem do passado brotou na minha cabeça: um garotinho miúdo pulando com facilidade de pedra em pedra e gritando para mim: “Não é difícil! É só me seguir! Não tenha medo!” E depois nós dois sentados na grama alta, ele se aproximando de mim, e...
- Ei, você é aquele garoto que colocou um sapo nas minhas costas! – exclamei.
Um sorriso se espalhou pelo rosto dele.
Um sorriso se espalhou pelo rosto dele.
- Depois de tanto tempo ainda se lembra! – disse ele, balançando a cabeça e sorrindo. – Querida, a sua reação foi algo chocante. Parecia até que eu tinha tentado te matar pelo jeito que saiu correndo na direção da sua mãe. Pensei que ficaria tão encrencado que não iria conseguir nem me sentar por uma semana.
- E ficou? – perguntei.
Havia alguma coisa de cativante no sorriso franco e simpático dele, algo que me fazia continuar conversando mesmo com o vento e a chuva rodopiando à nossa volta.
- Bah, que nada. Só umas cintadas do meu pai – respondeu ele.
- Bah, que nada. Só umas cintadas do meu pai – respondeu ele.
- Lua, venha dar uma mão a sua mãe com estas malas! – gritou meu pai.
- Vocês precisam de ajuda? – perguntou Arthur.
- Não tudo bem. Dá para a gente se virar – respondi.
Por alguma razão me pareceu importante que ele não achasse que uma família de burguesinhos da cidade estava chegando.
- Bom, eu vou para casa então – disse ele. – O seu avô com certeza vai ficar contente de ter vocês todos por aqui. A gente se vê por ai, Lua.
E, dizendo isso, ele saltou por cima do parapeito da varanda, desaparecendo na escuridão da noite.
- Ora, ora, não fique aí parada deixando todo o ar frio entrar aqui! Entre de uma vez! – explodiu uma grande e sonora voz.
Era meu avô, parado no arco da porta com muletas debaixo dos braços. Uma das pernas dele estava engessada, mas mesmo assim se parecia bastante com o que eu me lembrava: alto, largo, uma densa cabeleira branca e um cabelo grisalho. Uma figura realmente imponente e assustadora.
- Que noite para chegar! – exclamou ele. – Faz uns dois meses que não chove. Todo mundo tem reclamado do calor e da seca, e agora vocês trazem isso. Acho que a gente deveria contratá-los como fazedores de chuva!
Papai escalou os degraus na direção dele.
- Como você está, pai?
- Não tão mal, não tão mal – respondeu vovô. – Esta droga de perna dói um pouco, mas de resto não posso reclamar.
Reparei que não se abraçaram.
- Entrem, entrem – disse vovô.
Nós todos seguimos meu pai e meu avô pelo corredor de entrada.
- Você se lembra da Maria Cláudia... – disse meu pai, como se estivesse apresentando minha mãe a um estranho.
Mamãe sorriu timidamente.
- E das crianças – continuou papai. – Lua, Daniel e Ana. Digam “oi” para o vovô.
- Meu Deus do céu, não me diga que esses são os seus filhos! – vociferou vovô. – A última vez que nos vimos mal passavam do chão! Você os tem alimentado demais, Maria Cláudia.
Ana tinha se aproximado dele.
- Só ficamos mais velhos, bobinho – disse ela, enquanto vovô a acariciava nos cabelos.
Daniel e eu ficamos quietos, pouco ansiosos por travar novas amizades.
Daniel e eu ficamos quietos, pouco ansiosos por travar novas amizades.
- Oi, vovô – murmuramos ao mesmo tempo.
- Daniel, venha cá – ele pediu. – Deixe-me sentir os seus músculos para ver se vai ser de alguma utilidade para mim laçando novilhos nesta temporada.
Daniel me lançou um olhar aterrorizado, mas foi até o nosso avô e teve seus braços inspecionados por ele.
- Nossa... Você chama isso de braços? – disse vovô, balançando a cabeça. – Isso são palitos de fósforo. Não dá para laçar nem um coelhinho. Vamos ter de colocar você para trabalhar logo, para criar musculatura.
O olhar de vovô passou então para mim.
- E esta é a Lua – supôs. – Já se tornou uma mocinha, pelo que estou vendo. Você ainda tem medo da própria sombra?
- Nunca tive medo da minha sombra – respondi com frieza.
Vovô riu.
- Mas tinha de quase tudo – afirmou ele. – Aranhas, trovões, gado, sapos...
- Só nas minhas costas – emendei rapidamente.
Pude ver um brilho divertido nos olhos dele.
- Você cruzou com o jovem Arthur Aguiar ai fora antes de ele ir embora, não é? Ele tem tomado conta do meu gado. Com essa perna ruim não tenho como fazer isso sozinho. Ele esteve se preparando para receber você, Lua. Andou coletando sapos a semana toda.
- Nesse caso – repliquei, jogando meus cabelos para trás -, é melhor você espalhar por aí que, se algum cabeça-de-vento da região tentar se aproximar de mim com um sapo, vai se arrepender amargamente. Pratique caratê e não tenho o menor remorso de exercitar tudo o que aprendi.
Aquilo fez vovô rugir de prazer.
- Mais que vespinha você se tornou! – riu. – Gosto disso.
Então olhou para nós todos parados e desamparados lá no meio do gelado hall de entrada.
- Bom, não fiquem aí parados como estátuas, vamos entrando. Desculpem-me por não haver aquecimento – disse ele quando já entrávamos na sala. – Não receberei óleo diesel para o aquecimento central antes do começo de novembro, e do jeito que estou não tenho como ir lá fora para cortar lenha.
- Tudo bem – disse mamãe -, nós vamos nos sentir bem depois de uma refeição quente.
- Dêem uma olhada na cozinha e vejam o que conseguem encontrar – disse vovô. – Não tive condições de sair desde que me trouxeram do hospital. Receio que haja poucos mantimentos.
- Dêem uma olhada na cozinha e vejam o que conseguem encontrar – disse vovô. – Não tive condições de sair desde que me trouxeram do hospital. Receio que haja poucos mantimentos.
A cozinha era uma graça, com todos os detalhes típicos de uma casa de campo. Havia uma grande mesa de centro, cortinas feitas à mão e muitas plantas. Estava equipada com tudo o que é preciso haver numa cozinha. Exceto, é claro, a comida. A dispensa se encontrava quase vazia. E a geladeira também.
- Já sei, vamos pedir uma pizza – disse Ana, animada.
- Mas parar de comer comida ponta e passar a comer comida caseira não era um dos principais motivos de nos mudarmos para cá? – observei.
- Bom, mais como vamos comer comida caseira se não há o que cozinhar? – perguntou papai. – Simplesmente vamos ter de abrir uma exceção e comer comida pronta mais uma noite. Vou pegar a lista telefônica.
Vovô começou a rir de novo.
- Mais onde você acha que vai pedir uma pizza, hein? Isso aqui não é Nova York, sabe?
Nem precisava ter se dado ao trabalho de nos lembrar disso. Em Nova York não havia casas frias e úmidas a quilômetros de distância da civilização.
Nem precisava ter se dado ao trabalho de nos lembrar disso. Em Nova York não havia casas frias e úmidas a quilômetros de distância da civilização.
- Então vou sair para comprar uma pizza para nós – disse papai. – deve haver algum lugar que venda comida para viagem. Até uma pizza congelada no mercadinho serviria.
- Eles fecham as cinco – informou vovô.
- Bom, mas precisamos comer algo – replicou papai, com o seu bom humor desvanecendo rapidamente. – Essas crianças ficaram o dia todo sentadas no carro. Vou rodar por ai até encontrar alguma coisa.
Nós descarregamos o resto das coisas do carro sob a chuva e observamos papai tornar a descer a estrada.
- Tome cuidado, amor – gritou mamãe quando ele já saía, com certeza sem ser ouvida por causa do barulho infernal que fazia o vento.
- Imagino que queira arrumar as camas e os quartos lá em cima – disse vovô. – Estive dormindo aqui embaixo no sofá, por causa da perna, e por isso deixo tudo nas suas mãos, Maria. Vai encontrar lençóis limpos no grande armário do corredor.
- Vou ajudar você, mamãe – me dispus.
- Eu também – bradaram Daniel e Ana ao mesmo tempo, não querendo ficar sozinhos com vovô no andar de baixo.
Encontramos várias pilhas limpas e bem-arrumadas de lençóis e fizemos as camas juntos enquanto a chuva batia nas janelas e o vento uivava por entre os batentes. E papai não voltava. Tornamos a descer, e Daniel começou a citar todas as possíveis causas de acidente no Wyoming.
- Talvez uma árvore tenha sido derrubada por um raio e caído em cima do carro do papai. Talvez uma vaca tenha pulado uma cerca e aterrissado em cima do papai. Talvez tenha havido uma enchente relâmpago.
- Cala a boca! – gritamos todos ao mesmo tempo, fazendo-o parar por um tempo.
- Garotos esquisitos o seu, Maria – comentou vovô.
- Garotos esquisitos o seu, Maria – comentou vovô.
- Estão cansados e famintos, é só isso – replicou mamãe. – Onde será que está o Billy?
- Poderíamos assistir a um pouco de TV – disse Daniel. – Jeopardy deve estar passando agora.
- Poderíamos assistir a um pouco de TV – disse Daniel. – Jeopardy deve estar passando agora.
Daniel se levantou de um salto, mas vovô fez um gesto com o braço para ele voltar a se sentar.
- A TV não está funcionando – revelou vovô.
- A TV não está funcionando? – perguntou Daniel, como se vovô tivesse dito que nunca tomava banho.
- Não ter TV vai ser bom para todos nós – ponderou mamãe. – Nunca tivemos tempo para conversar ou ler, e sempre quis ter tempo para essas e outras coisas. Imagine só uma colcha feita em casa estendida na minha cama e saber que eu mesma teci cada ponto!
- Minha esposa fez a colcha que está na cama do antigo quarto de Billy – disse vovô. – Ela ficava sentada naquele canto costurando durante as noites quando ele era pequeno.
Olhei de um rosto para o outro. Estava acontecendo de verdade: minha família já começara a se “ruralizar”. E pelo bem deles eu tinha de aparentar que estava achando tudo normal!
- Como vamos poder alugar fitas de vídeo se não há TV? – perguntei. – Aposto que não há nenhum cinema mais perto do que em Cody.
- Nem videoclube – disse vovô, rindo por entre os dentes. – Nem sei dizer se em Cody eles permanecem abertos durante o inverno. A maioria dos estabelecimentos por aqui fecha as portas quando termina a temporada turística. Fica tudo tranquilíssimo no outono e no inverno.
- O que os garotos fazem para se divertir, então? Aonde eles vão? – insisti.
- Acho que inventam as suas próprias formas de se divertirem – explicou vovô. – Gostam de pescar e têm seus cavalos para fazer coisas como torneios de laço ao novilho. A maior parte deles tem de acordar ao amanhecer para cumprir as tarefas no sítio e, portanto, não podem ficar acordados até tarde da noite como os garotos da cidade.
Olhei para ele boquiaberta de horror.
Mamãe olhou para o seu relógio.
- Já são nove e meia – disse ela com uma voz preocupada. – Vocês acham que deveríamos ligar para o xerife? Talvez papai tenha se perdido.
Justo nesse momento a porta de entrada se escancarou dramaticamente, deixando entrar um redemoinho de folhas mortas e um vento frio e úmido. Papai ficou lá parado, ensopado pela chuva, com uma caixa na mão e um olhar selvagem.
- Não há uma única pizza daqui até Chicago! – vociferou ele.
- Não há uma única pizza daqui até Chicago! – vociferou ele.
- Tentei te avisar, filho. Eu estava justamente explicando a sua adorável esposa que a maioria dos estabelecimentos comerciais fecha as portas depois da temporada turística.
- Estávamos ficando preocupados com você – disse mamãe, se levantando para pegar a caixa que ele trazia e ajudá-lo a tirar o casaco molhado. – Pensamos que você tivesse se perdido.
- Pensei que você tivesse sido atingido por uma árvore, ou que uma vaca tivesse pulado em cima de você – acrescentou Daniel.
- Quase – revelou papai. – A situação está preta lá fora, principalmente na estrada principal. Quase fui arrastado por essa ventania.
- Então você trouxe uma pizza para a gente, papai? – perguntou Ana. – Encontrou um pouquinho em Chicago?
- Não, meu amor, não encontrei nenhuma pizza. Na verdade tive sorte de encontrar algo. Havia um lugar em Cody que ainda estava aberto, e eles me deram uma caixa de costeleta e um pote de biscoitos.
Ele abriu a caixa e um cheiro quente e gostoso encheu a sala. Sophia tinha me convencido havia pouco tempo de que comer carne era tão errado moralmente quanto maléfico para a saúde. Hesitei, dividida entre os meus novos princípios e o desejo de não passar fome. O cheiro estava me enlouquecendo. O resto de minha família já havia se lançado ao ataque e estavam todos devorando as costeletas como uma tribo da Idade da Pedra. Se eu não agisse rápido, não sobraria nada. Minha fome venceu: peguei um prato e o enchi de costeletas até o topo. Elas estavam macias e suculentas, cheirando a lenha, e com tempero no ponto certo. Fiquei impressionada.
Depois de comermos, Daniel e Ana não precisaram de que lhes dissessem nem uma palavra para irem para a cama. Afinal de contas, já era mais de meia-noite em Nova York, e no Wyoming estávamos em outro fuso horário: o da zona das Montanhas. Meus pais e meu avô foram para a cama também. Eu me sentei na cama do antigo quarto de meu pai, prestando atenção nos assustadores ruídos da noite e me sentindo com muito frio e muito sozinha. Silenciosamente, abri de leve a porta do quarto, de forma que a luz da sala penetrasse um pouco e tirei papel e caneta da minha mala.
Querido Chay – comecei a escrever -, bem, já estamos aqui, e tudo é mesmo tão ruim quanto imaginei que fosse ser. Não, na verdade é pior. Não posso imaginar um lugar mais deprimente em todo o planeta. Um gelo, sem televisão, um avô rabugento, e estamos tão no cafundó-do-judas quanto alguém poderia estar nesse mundo. O único vizinho é o garoto que uma vez colocou um sapo nas minhas costas. Não se surpreenda se você me vir batendo à sua porta dentro de uma semana...
Parei de escrever porque minha mão estava congelando e eu não conseguia mais continuar. Deslizei para debaixo das cobertas e puxei a colcha feita à mão por cima da minha cabeça. A chuva martelava na janela e o vento assobiava. “Eu não vou agüentar isto. Eu não vou agüentar isto”, sussurrei uma e outra vez para mim mesma.
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