quarta-feira, 4 de abril de 2012

Coração Dividido


A música transbordava pelo corredor quando Sophia e eu saímos do elevador no vigésimo andar. Eu podia sentir as retumbantes batidas do ritmo através das solas dos meus sapatos. E podia sentir também, quase na mesma altura, as retumbantes batidas do meu coração.

- Não consigo acreditar que estamos aqui! – sussurrei, me agarrando ao braço de Sophia para me sentir mais segura. – Estamos mesmo indo à festa de Chay!
- E se as coisas progredirem da forma como acho que vão progredir – disse Sophia, com um ar de sabida -, eu diria que isto é o começo de um lindo relacionamento. Lua e Chay, uma combinação feita no céu. Com a ajuda de Sophia, claro.
- Sei, sei... - resmunguei, lançando-lhe um olhar que a fez rir.
Mas não conseguia parar de sorrir para mim mesma. Estava tudo bom demais para ser verdade. Eu havia começado o colegial um ano antes na Dover, uma especialíssima e puxadíssima escola privada em Manhattan, como uma típica e completa Zé-Ninguém. Estava com quatorze anos e parecia ter onze. Na verdade a única coisa em que conseguia me destacar um pouco ao longo daquele ano fora a ginástica olímpica, para a qual, no entanto, ninguém em Dover parecia dar muita importância. Ficava admirando com inveja todas aquelas garotas com corpos perfeitos que, cheia de autoconfiança, perambulavam pelas salas de aula e corredores da escola, sempre vestidas na ultima moda.
Até que, perto do fim do ano, as coisas começaram a acontecer pra mim. Cresci, e meu corpo se recheou nos lugares certos. Àquela altura já havia posto um fim às minhas esperanças de chamar a atenção com as minhas habilidades esportivas, mas pelo menos as pessoas tinham começado a notar que eu existia. O momento de grande virada foi quando ajudei Sophia a desentalar o salto de seu sapato da grade de um bueiro e a acompanhei até seu apartamento. Depois disso começamos a voltar juntas diariamente da escola para casa. Suzanne era uma central ambulante de informações que conhecia todo mundo na escola, e em pouco tempo eu já fazia parte da turminha dela.
E essa turminha incluía Chay Suede.
Eu o havia contemplado embevecida ao longo de todos aquele meu ano de caloura, maravilhada com o comprimento dos cílios dele, com aquelas pequenas e adoráveis covinhas que apareciam em suas bochechas quando ele sorria, e com o jeito dele, com aquelas pequenas e adoráveis covinhas que apareciam em suas bochechas quando ele sorria, e com o jeito dele encarar as garotas com aquele seu olhar ardente e fixo. Eu jamais teria sonhado que esse olhar um dia recairia sobre mim, mas no começo do segundo ano nos tornamos parceiros no laboratório de biologia.
Coisas do destino! Nós nos sentávamos lado a lado no laboratório, com nossos joelhos se tocando levemente enquanto dissecávamos vermes. O professor, um homem sério que usava uns óculos enormes, falava de um jeito empolado que fazia Chay e eu rirmos em segredo o tempo todo. Chay tinha adquirido o hábito de sussurrar coisas engraçadas e picantes no meu ouvido, e a sensação da proximidade de seus lábios e do calor de sua respiração me deixava tonta. Não consegui acreditar no que ouvi quando ele sugeriu que fizéssemos a nossa lição de casa de biologia juntos.
Foi assim que começamos a freqüentar regularmente o Café Fiorelli, na Rua 75, o lugar preferido doas alunos da Dover, para fazermos as nossas lições. No começo tinha sido só biologia, até que um dia ficamos lá sentados tomando um moncha, um delicioso café árabe, só conversando e rindo por horas a fio. Eu nunca antes havia me sentido tão à vontade com um garoto. Nunca tinha sido capaz de rir e ficar com um deles despreocupadamente, relaxada.
Chay era diferente. Realmente divertido, era fantástico imitando os professores. Reparei que havia outras pessoas nos olhando, e me senti muito orgulhosa por estar com ele. Eu poderia ter ficado lá sentada com Chay para sempre.
- Eu me diverti muito hoje, Lua – ele disse enquanto me acompanhava a pé até a minha casa. – A gente devia fazer isso mais vezes.
E então aconteceu: na entrada do meu prédio, do lado de fora, ele me deu um delicado beijo de despedida. Mesmo tendo sido apenas um rápido roçar entre os nossos lábios, com muita gente passando, aquilo me fez formigar até as pontas dos dedos dos pés.
Foi uma semana depois, quando estávamos de novo no Fiorelli, que ele me contou sobre a festa.
- Vai ser demais! – disse, entusiasmado. – Meus pais vão estar fora da cidade.
- E eles vão deixar você dar uma festa enquanto estão fora?
- Não exatamente – respondeu Brendan, piscando com malícia. – Minha irmã mais velha vai estar por perto. Supõe-se que vá ficar de olho em mim, mas ela é bem liberal. E vai ser útil para comprar cerveja, já que é maior de idade. Você vai, não vai? – perguntou esticando o braço e pousando sua mão sobre a minha.
- Claro – repliquei. – Não perderia isso por nada.
Antes de responder, já sabia muito bem que iria àquela festa mesmo que fosse preciso atravessar o oceano Atlântico a nado para chegar nela. E na verdade seria preciso superar um obstáculo quase tão difícil quanto esse: convencer meus pais. Para os nova-iorquinos progressistas e esclarecidos que são, mostram-se surpreendentemente antiquados em certos aspectos. Eu sabia exatamente o que fariam se lhes pedisse permissão para ir à festa de Chay: iriam ligar para os pais deles e descobririam que estes não estavam planejando ficar em casa naquela noite. Então me comunicariam, com suas vozes calmas e sensatas, que sentiam muito mais eu não teria autorização para ir a uma festa na qual não haveria nenhuma supervisão de adultos.
Havia telefonado para Sophia desesperada.
- Preciso ir de qualquer jeito! – gemi. – Chay me disse que não vai ter graça nenhuma se eu não for. Acho que ele realmente gosta de mim, Sophia. Não posso perder essa festa.
- É simples – respondeu a voz profunda e melodiosa de Sophia do outro lado da linha. – Se acha que os seus pais vão dizer não, então “não” conte a eles.
- Espera aí, Sophia – repliquei com uma risada nervosa -, não posso mentir para os meus pais. E vou ter que inventar uma história muito convincente para que me deixem ficar na rua até depois de meia-noite...
- Então diga a eles que vai passar a noite na minha casa – propôs Sophia. – E você pode mesmo voltar comigo depois da festa e ficar aqui em casa. Assim não terá mentido aos seus pais.
- Sophia, você é um gênio! – exclamei no telefone, excitada.
Afinal, meus pais não teriam nada contra eu dormir na casa da minha melhor amiga numa sexta-feira à noite.
- Ótimo. Não vejo à hora de chegar a noite de sexta – concluiu Sophia.
Tinha sido tudo tão fácil! Na sexta à noite peguei meu vestido novo de veludo preto, no qual gastara bem mais dinheiro do que deveria, e tudo o mais que precisaria para me fazer bonita, charmosa e desejável para Chay. Então fui para a casa de Sophia, onde me troquei e me arrumei. E agora lá estava eu, caminhando em direção à porta daquele apartamento no vigésimo andar de um prédio em Manhattan.
Foi o próprio Chay quem abriu a porta. O rosto dele se iluminou quando me viu.
- Nossa, Lua, que chique! – exclamou, passeando seus olhos desde o alto da minha cabeça até a ponta dos meus sapatos de salto alto.
Ele pegou na minha mão.
- Venha comigo lá fora, no balcão.
- Mal chegamos e ela já está tentando me seduzir – comentei rindo com Sophia.
- Quero lhe mostrar uma coisa – insistiu ele, com seus olhos fixos nos meus. – Você jamais vai acreditar.
Eu segui ao longo da sala. E nós saímos para o balcão. Na nossa frente o Central Park era um imenso retângulo de escuridão rodeado por um milhão de luzes.
- E então, o que você acha disso? – perguntou Chay orgulhoso, fazendo um aceno com o braço.
- A vista? É linda...
- Não, não é a vista – disse ele. – Lá, no canto!
Eu olhei ao redor.
- Um barril de cerveja! – exclamei.- Como você trouxe isso aqui para cima?
- Não foi nada fácil – respondeu ele. – Micael, Bernardo e eu o subimos pelo elevador de serviço dentro de uma lata de lixo. Foi a minha irmã quem comprou. Legal, não é?
Essa era uma das coisas que eu gostava em Chay: ele assumia riscos. Desejei que um pouco da coragem dele passasse para mim. Não é fácil amadurecer e se tornar corajosa quando se tem pais super protetores como os meus. Pensar neles naquele instante provocou uma pontada de sentimento de culpa em mim. Nunca havia mentido para eles antes, pelo menos não uma mentira tão atrevida como aquela. Dessa vez a coisa era séria.
Mas eu não tive mais tempo para pensar nisso, porque Chay me enlaçou com os seus braços.
- E já que tenho você todinha para mim aqui fora... – sussurrou ele.
Então ele me beijou. Não foi nosso primeiro beijo. Ele já me beijara quando nós voltávamos caminhando juntos do Café Fiorelli até a minha casa. Mas naquela ocasião tínhamos precisado parar logo, porque às pessoas estavam olhando. Agora éramos só nós dois sozinhos na escuridão, e os lábios dele estavam quentes e deliciosos... Através do tecido do meu vestido eu podia sentir o calor de suas mãos nas minhas costas e seu coração martelando contra o meu.
- Acho que a gente devia voltar para dentro – sussurrei, rindo nervosamente enquanto nos apartávamos. – Daqui a pouco todos vão começar a se perguntar onde estávamos.
- Não, não vão – disse ele. – Eles não são bobos. Vão ter capacidade para adivinhar onde estamos e o que exatamente estamos fazendo.
Da escuridão vinha o rondo abafado dos táxis e um som difuso de um jazz tocando em algum lugar.
- Amo Nova York – suspirei. – É uma cidade tão romântica e tão excitante...
- É sim – disse Chay, com seus braços ainda ao redor da minha cintura. – eu não conseguiria viver em nenhum outro lugar.
- Nem eu. Apesar de meus pais continuarem a falar em fugir para uma fazendinha em Connecticut... – comentei.
- Estão só fantasiando – replicou Chay. – Todos os nova-iorquinos fazem isso. Minha mãe está sempre ameaçando de nos mudarmos para o campo, mas no fundo ela não está falando sério.
- Você tem razão. Meus pais também adoram esta cidade.
- Ei, Chay, venha cá! – gritou uma voz de dentro do apartamento. – Tem uns caras aqui na porta que dizem que conhecem você lá do campo de futebol.
- Ah, deve ser o Danny! – gritou Chay de volta, se afastando de mim. – A gente continua mais tarde – sussurrou no meu ouvido, me arrastando para dentro da sala.
Logo Chay estava cumprimentando ruidosamente os recém-chegados na porta da frente, e me vi engolida pela multidão que já lotava o apartamento.
- Não vi você chegar, Lua – comentou Mel Fronckowiak.
Mel fazia parte da turma de Sophia e também tinha se tornado minha amiga.
- Isso porque o Chay arrastou-a lá para fora no exato momento em que ela pôs os pés aqui – comentou Sophia rindo.
- Para que, admirar a vista? – perguntou Rayana.
- Para o que você acha imbecil? – retrucou Sophia, girando os olhos em minha direção. – É, minha cara, acho que vocês dois já viraram fofoca nacional. Escutei um garoto por aí falando de você como “a nova gatinha do Chay”.
Senti minhas bochechas esquentarem quando percebi que as outras garotas começaram a olhar me olhar com um interesse especial. Peróla, uma caloura bastante popular em Dover, estava olhando fixamente para o meu vestido.
- Você o comprou no Village, não foi? – perguntou ela. – Eu o vi numa vitrine da English Street, mas não tinha dinheiro suficiente.
- Decidi que seria melhor andar pelada o resto do ano e comprar o vestido – respondi sorridente e delicada. – Minha mãe ficaria louca se soubesse quanto paguei por ele.
- E para que servem os cartões de crédito? – brincou Sophia.
- Fica muito bem em você – observou Peróla.
- Você pode usá-lo de vez em quando, se quiser – ofereci, me sentindo generosa e magnânima.
- Obrigada – disse ela, sorrindo.
Eu me senti maravilhosamente bem sendo o centro das atenções, recebendo olhares de admiração de todos os lados e conversando de verdade com algumas das alunas e dos alunos mais populares da Dover. Poucos minutos depois Chay apareceu com um copo de cerveja para mim. Dei um gole, apesar de não ser muito chegada em bebidas. Além do mais, detesto o gosto da cerveja.
A sala estava ficando cada vez mais apinhada, e alguns garotos tinham acendido cigarros, enchendo o ar de fumaça azul. O nível de barulho aumentava junto com a fumaceira. Alguém tinha colocado um CD de rap, e alguns garotos estavam dançando no corredor. A música soava tão alta que produzia a sensação de se fazer parte de uma gigantesca batida de um único coração.
- E se alguém chamar a polícia, Chay? – perguntou Mel.
- Não se preocupe. Acertei tudo com os vizinhos. Todo mundo neste andar vai ficar fora de casa durante a noite, e o velho que mora aqui embaixo não liga. E molhei a mão do zelador com vinte dólares. Está tudo em cima, tudo sob controle.
Ele me puxou para perto de si e me deu um rápido beijo na bochecha.
- Então você conseguiu se virar para vir aqui sem que os teus pais te amolassem, Lua? – perguntou Mel.
- Dissemos a eles que ela ia dormir na minha casa – disse Sophia.
- Na verdade foi fácil – expliquei.- Mal estavam prestando atenção quando perguntei se podia vir. Eles têm tido um monte de preocupações ultimamente... Meu pai pegou um caso importante que está indo agora para os tribunais, e minha mãe tem que fazer uma apresentação para um novo cliente da empresa em que ela trabalha. E no meio disso tudo meu avô ainda ligou de Wyoming, dizendo que quebrou a perna e não tem como tomar conta do sítio. Agora meus pais estão tentando decidir o que fazer com ele...
- Você tem um avô num sítio, Lua? – interrompeu Micael, um dos amigos de Chay. – Por alguma razão me aprece que isso não combina com você.
- E não combina mesmo – disse eu. – Nem com o meu pai. Ele não via a hora de cair fora de lá quando chegou a idade de ir para a faculdade.
- Sei lá... – comentou Rayana. – Acho que um sítio soa tão romântico! Todos aqueles cavalos... Você nunca vai lá?
- Não estivemos mais lá desde que eu era bem pequena – respondi. - Meu pai e meu avô não se dão muito bem. Meu avô não consegue entender as necessidades que meu pai sente da vida urbana. E não tenho grandes lembranças do lugar. Só me lembro de um menino que tentou me beijar no celeiro de meu avô. E me lembro também dele colocando um sapo nas minhas costas, por dentro da roupa, quando estávamos passeando perto do rio, e de meu avô dizendo que eu era uma mimada e fricoteira por ter ficado nervosa durante uma tempestade com raios e trovões. Não foram as melhores férias da minha vida.
Alguém colocou um outro CD de rap, e todos nós começamos a dançar. Mas estava me sentindo um pouco culpada. Queria ser livre e dona do meu nariz como os meus amigos, mas não conseguia me desvencilhar daquela estúpida sensação de culpa. Será que eu era a única que se sentia assim? Como Sophia dissera, não tinha mentido aos meus pais. Apenas não havia revelado todos os fatos. Todo mundo fazia coisas desse tipo o tempo todo. Meus amigos achavam que não tinha nada demais. Por que então me sentia mal?
Segurei Chay quando ele passou perto de mim.
- Dança comigo – pedi.
Quase ao mesmo tempo a música mudou para uma batida lenta. Chay me agarrou apertado. Sentia o calor da bochecha dele encostada-se à minha, e seus braços me enlaçavam com tanta força que respirávamos como se fôssemos um só. Fechei os olhos, com um sentimento de perfeito e extremo contentamento. Era a noite mais maravilhosa da minha vida. E eu não queria que acabasse.
Não escutamos a campainha no começo.
- Dê uma olhada se são penetras, cara – pediu Chay a Micael, que estava em pé perto da porta bebericando uma cerveja. – Se for o velho de baixo reclamando, seja simpático com ele.
- Obrigado por me deixar cuidar disso, Chay – disse Micael sarcástico, ao mesmo tempo abrindo a porta.
Chay beijou minha testa e começamos a balançar nossos corpos no ritmo da música. Estávamos começando a nos embalar quando Micael abriu caminho a empurrões no meio da multidão para chegar até nos.
- Ei, Lua! – chamou preocupado. – É sua mãe e o seu pai. E não parecem estar muito felizes!star muito felizes!

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